quinta-feira, 29 de março de 2012

A Família

                                     



A Família



(...) Chove. O escritor lembra de uma colega de infância que corria embaixo da chuva, o vestido molhado colado no seu corpo lindo, os seios aparecendo, a água penetrava por entre suas nádegas e coxas robustas, que lhe revelavam a forma das calcinhas. O escritor tinha seus treze anos, ela também, e ficavam brincando tomando banho embaixo das biqueiras das casas. Era um tempo bom, tempo de infância. Convivendo com a natureza, o cheiro da terra molhada exalando a fragrância das rosas e dos jasmins, bebiam a água  da chuva. Abraçados, rolavam e com seus corpos juntos, riam e ela sentindo e vendo o seu membro duro tocando-o no seu corpo. Reclamava, brincando. Faziam bochecha d’água e jogavam um no outro, como também juntava água da chuva com as palmas da mão e jogavam . Os pais empombando, diziam:

- Sai da chuva. Que menina danada!
- Eu não quero você brincando com menino! Você já está uma moça!

O escritor sabia que a sua idade já estava causando ciúmes aos pais de suas colegas, os pelos de seu corpo já estavam crescendo, ficando um homem! O cuidado que os pais têm com os filhos é normal, só que eles esquecem que já foram crianças. Mas, se alguns não tiveram oportunidades de brincar, não poderia fazer nada por eles! Iam ficar sem deixar os seus filhos brincarem? A natureza tem seus mistérios e o ser humano os seus caprichos. Agora, já com quarenta e seis anos e perto dos cinquenta, não sabendo do paradeiro de algumas de suas colegas, pensava: “será que elas lembram de mim?” Ora, talvez até onde elas estivessem não chovesse naquele momento, mas a lembrança faz parte da vida. O importante é que se casou com uma delas, a filha do sargento.
No outro dia, era dia de sol. O céu azul com poucas nuvens. Azul e branco também era o vestido de suas colegas colegiais. Estudavam na mesma classe, o escritor de farda cáqui com duas listras azuis nos lados das pernas da calça. Ele e a filha do sargento iam conversando sobre os deveres que fizeram à noite, com os pais brigando, parecendo que eram irmãos: um casal de irmãos! Na classe, ela jogava bilhetes de amor, cruzava as pernas a propósito e o escritor observava as suas coxas pelo espelhinho redondo de bolso. A classe era dividida: meninas à esquerda e meninos à direita. Os alunos se levantavam ao entrar o professor de inglês (respeito aos mestres),  que dizia:

- Sit down the boys, sir down the girls...

Toda a aula era em inglês. No tempo do escritor ensinava-se Latim, Francês e Inglês. Hoje, está tudo mudado, diferente. Não se ensinam mais Latim e Francês: só Inglês!
Nos campos, meninos a disputarem o “pega-tanajura” com tiras de panos e galhos de mato, para que as tanajuras – nos seus vôos rasantes – caíssem no chão mais depressa. Arrancavam as asas e jogavam-nas numa vasilha, meia de água. Os mais espertos, homens e mulheres, iam para o meio do mato onde se encontravam os grandes formigueiros. Levavam bacias com água e ficavam com os pés dentro para evitar as picadas das saúbas, que ficavam ao redor dos buracos. As tanajuras ao saírem eram agarradas. Era esta uma das causas da demora do aparecimento das tanajuras. Então, os meninos entravam logo nos estribilhos:

Cai, cai tanajura
Tua bunda tem gordura.

Cai, cai tanajura
Que teu pai já morreu
E tua mãe ta no Ibura.

- Esse menino vai findar se casando com a filha do Sargento!
- Nada, meu filho, eles são crianças ainda...

O Sargento lia no jornal sobre o extermínio de crianças de rua, aspirando a fumaça do seu cigarro. Ficava satisfeito em saber que os seus filhos deram pra gente. A esposa lia um livro instrutivo e sugeria ao marido dá-lo de presente ao colega de sua filha (o escritor) um bom livro. Concordando, diziam:

- Livro ainda é o melhor presente.

No aniversário do escritor lhe fora dado o prometido livro. O escritor é também telegrafista e ainda hoje guarda com carinho este maravilhoso presente. A sua esposa fica emocionada. Sempre o escritor lê em voz alta: “... Outras vezes o viajante lobriga ao longe, rente ao caminho, uma ave branca pousada no topo dum aspeque. Aproxima-se devagar ao chouto rítmico do cavalo; a ave esquisita não dá sinais de vida; permanente imóvel (...) Não é ave, é um objeto de louça... O progresso cigano, quando um dia levantou acampamento dali, rumo Oeste esqueceu de levar consigo aquele isolador de fios telegráficos... E lá ficará ele, atestando mudamente uma grandeza morta (...)” (Monteiro Lobato, Cidades mortas, São Paulo, 1957 – op. cit., p. 7)
Sempre quando vão para as festas de aniversário levam um livro para presentear ao aniversariante. Foram assim educados e este hábito conservarão até o fim da vida. Que virtude daquele casal! Dizem os que gostam de ler, como vocês.
O escritor é casado com a filha do sargento e tem cinco filhos. Todos, de maior. Três formados e dois estudantes do segundo grau. Todos os personagens... O que poderá acontecer, iremos ver nos capítulos que se seguem...

( Capítulo 1 do livro “Aonde iremos nós?”, ed. do autor – 1983).


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