quarta-feira, 31 de julho de 2013

O Cristo Mulato 4 (teatro)



O Cristo Mulato 4

               (Teatro)

 Por José Calvino

A CLASSE TRABALHADORA ESTÁ SENDO BOMBARDEADA POR CONSTANTES INJUSTIÇAS, E TREMENDAMENTE PREOCUPADO FICO EU QUANDO PENSO QUE MILHARES DE PESSOAS, COMO VOCÊ, AINDA PASSAM POR TAIS SITUAÇÕES.



PEÇA EM QUATRO ATOS E DEZ CENAS,
BASEADA NOS ANOS 40, 70, 80, 90 e 2000.
IDEM DO LIVRO HOMÔNIMO DO AUTOR 

Personagens

O Cristo Mulato/Kalvinovitch
Onivlakovitch
Padre
Berenice
Chefe / Estação
Negra
Guarda-freios
Português
“Meganhas”
Povo
Bailarinos (as) Passistas  


Quarto Ato


ATO IV

CENA I

CENÁRIO – O mesmo

ANOS 2000

Ao abrir-se o pano, vemos as lâmpadas acesas nos postes. A cidade toda iluminada alguns jovens revoltados:

JA – Por que as autoridades sanitárias não conseguiram, até agora, sanear os bairros do Recife e Olinda?
JB – Eu quero ver se o povo vai continuar suportando tantas muriçocas, em suas casas. Sinceramente, com esse racionamento de energia, desligando o ar refrigerado e os ventiladores, o calor será insuportável. Como vamos nos defender desses insetos, nessa época do ano, especialmente à noite?
JC – Praticamente, este ano não houve inverno (2001) ninguém agüenta os mosquitos com esse anunciado racionamento de energia elétrica.
JÁ – Vem outra eleição por aí. O povo agora vai votar no candidato popular...
JC – Agora é tarde, ele irá fazer o mesmo dos antecessores!

Vozearia

Escurece

Silêncio

Acendem-se os refletores em resistência. Ouve-se o canto do galo. É carnaval. Termina a peça, igualmente à de “Trem & Trens”. O palco todo iluminado. Entra em cena o povo, brincando com os rostos e os corpos pintados de urucum. Foliões com garrafas de batidas, passistas, agremiações carnavalescas, blocos, maracatus, etc. Ouvem-se frevos, sambas...(músicas de carnaval).

CORRE O PANO
LENTAMENTE


Ouve-se “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso)

FIM DO QUARTO E ÚLTIMO ATO.
È vedada qualquer representação desta peça
em teatro, rádio ou televisão, assim como a sua
reprodução, total ou parcial, sem a prévia
autorização do autor.



Terceiro Ato

ATO III

CENA I

CENÁRIO – O mesmo dos atos anteriores

ANOS 90:


Ao abrir-se a cortina, pela metade, lentamente, é noite e se vê a igreja fechada. Onivlakovitch, envelhecido, de barba, junto com o povo. Assiste na praça à vitória do candidato Collor. Ouve-se o Frevo-canção “Carnaval da Torre” (Do autor) 1.
“Recife cidade linda” (Do autor) 2.Observação necessária: Este Ato é a continuação do teatro “Trem & Trens”.

Vozearia

A cortina se abre, agora, totalmente.

POVO:

HI – Vitória, vitória!
HII – Agora o Brasil tem um presidente honesto.


1-2- Gravado em discos – fev/mar, 2003 –Voz do autor.


HIII – A equipe econômica do governo está com uma ministra inteligente!
MI – Zélia Cardoso confiscou o nosso dinheiro!
HI – Tem que ser assim.
MI – Eu não concordo, eu tinha na poupança cento e cinqüenta mil, isto é lá dinheiro para confiscarem? Me prejudicou todinha. E mesmo, isto é furto. (Revoltada) O presidente é um ladrão de marca maior!
MII – Mas ele devolverá com juros e correção monetária. Isto é só no começo, depois melhora.
HIV – Ele não tem o direito de lançar mão no nosso dinheiro, o povo não entende!
MI – Eu entendo, sim. Color é um ladrão, isto sim é o que ele é!
HI – Rapaz, ele começou agora. Vamos ser solidários.
HII– Disseram que Lula iria fazer o mesmo.
MII – Ah!, isto ninguém duvide. Vamos prá frente, eu vou rezar para que tudo dê certo. É claro que eu vou torcer para o bem do Brasil.
HIV – O meu pai sempre dizia: “Não é gaiola bonita que dá de comer a canário.” Vamos prá frente, oxalá que dê certo. Não acredito, começou errado, plantando mal, irá colher o quê?, mas... vamos ver.


FECHA O PANO LENTAMENTE



CENA II

CENÁRIO – O mesmo.

Época – Dois anos depois.


Ao abrir-se o pano, vê-se os jovens com as caras-pintadas. O povo revoltado, com faixas. A imprensa falada, escrita e televisada, em ação.
Para não virar “coqueluche” vide livros, jornais, revistas, etc. Que enriquecerá esta peça referente aos escândalos existentes no nosso país com alguns políticos, militares, religiosos, policiais,et cétera et cétera, envolvidos.

POVO:

Impeachment!
Impeachment!
Queremos Deus 95.
Queremos o impedimento do presidente!
Impeachment!
Cadeia!

ONIVLAKOVITCH (Otimista) – Agora, com este arrastão de corruptos, eu quero ver se o povo não toma vergonha. Não irei citar os nomes, porque já são tão divulgados pela imprensa, que dá até nojo citar. Mas vocês sabem os escândalos que vêm se alastrando por aí. Agora é com vocês. Na próxima eleição para presidente, governador, senador, deputado, tudo, tudo, vocês devem saber qual deve ser a opção.
BERENICE – E o candidato do governo é filho de general, já pensou?
ONIVLAKOVITCH – E tem gente que irá votar porque é candidato do governo! Como se fosse obrigado votar somente no candidato deles!, prá dar certo. E sempre dando errado! Eu ontem ouvi um dizendo que vai votar em Lula para o Exército tomar conta. Não é um imbecil?
BERENICE – E como! Será que o nosso povo não está vendo que tudo isto que está havendo foram os militares que provocaram? E que o Itamar está sendo um boneco nas mãos deles?
ONIVLAKOVITCH – E ele era vice de quem? Será que não é farinha do mesmo saco?

Risos

BERENICE – Agora vem o horário eleitoral, o povo ainda vai na conversa!

ONIVLAKOVITCH – Se o nosso povo é analfabeto e semi-analfabeto, o que nós podemos fazer?, é esperar o resultado das eleições. Depois de eleitos, se não fizerem nada em prol do povo, esse mesmo povo se preparará para uma revolução, com certeza. Prá mim, foi o último plano que eles fizeram. Se não der certo, a real moeda realmente...
BERENICE (Corta) – A revolução está garantida neste caso, infelizmente, o que será para o nosso tão sofrido povo brasileiro? Será uma pena, uma decepção eles não se conscientizarem de que não devem fazer empréstimos abusivos, colocando a culpa no povo. Será o caos! Você, Onivlakovitch, como irmão de Kalvinovitch, de criação, é claro, que eu já estou sabendo, desculpa a minha franqueza, ele era o meu confidente, tudo muito bem, mas nunca revelou se era comunista, o que achas disso? E você, finalmente, é também?
ONIVLAKOVITCH – Olha rapaz, não pertenço a nenhum partido político, nem tão pouco Kalvinovitch pertencia. Agora, eu estou achando uma infantilidade sua fazer este tipo de pergunta, logo a mim. Agradeço a confiança porque você sabendo eu ser um policial militar, embora da reserva, poderia ficar inibida em perguntar, mas uma coisa eu lhe digo: Kalvinovitch era um homem revoltado com o sistema de governo. Eu, idem. Então, se o comunismo não presta para esses ladrões de gravata, eu neste caso tenho minhas dúvidas, embora que nem eu nem Kalvinovitch sabíamos o que é comunismo. E você, lendo o livro dele, vê que é um conúbio literário, referente à vinda da mãe dele ao Arraial, à morte, às suas prisões, tudo enfim. Pergunto, eu: e você, é comunista?, desculpe também.

BERENICE – Sou simpatizante, embora eu não goste de nenhum regime ditatorial. A democracia é o ideal para nós, apesar de quê, o que vejo aqui é uma falsa democracia. Apenas a capa, para enganar aos brasileiros obrigando-os a votar, os jovens a servirem ao Exército, a votarem, também, analfabetos, sujeitos ao voto de cabresto e, assim, se vai a nossa falsa democracia! E a minha infantilidade, justamente, era saber da realidade e confidenciar a você, que estou pronta para ser sua confidente, como era com Kalvinovitch. Sim, eu ia esquecendo: também não pertenço a nenhum partido público, nem tenho religião, e tenho as minhas dúvidas quanto à existência de Deus.
ONIVLAKOVITCH – Querida doutora, mais uma vez muito obrigado pela confiança e ser de agora em diante o seu confidente e vice-versa. Muita sorte sua ter tido um confidente de um quilate como irmão Kalvinovitch. Sobre religião, eu também não tenho. A minha conversa com o padre é por causa de Kalvinovitch. É ele quem sempre nos procura. Pergunto, o que achas do padre Benigno?
BERENICE (Sorri) – Não é de muita confiança...
ONIVLAKOVITCH (Corta) – Eu mesmo não confio nesse povo, o meu irmão ainda gostava, não sei porque. Por isso eu disse, antes, que ele era um homem revoltado, foi muito prejudicado, até mesmo pelo Vaticano! Agora, eu fico assim sem jeito, mas religião é assim mesmo!, a fé é que é importante. Gente de fé, eles exploram. Esse povo inocente! Mas, assim mesmo, é bom eles fazerem as suas romarias. O povo cantando com fé religiosa!...

BERENICE (Esperançosa) – Vamos ver se o Deus deles olha para o nosso Brasil.
ONIVLAKOVITCH – Oxalá, irmã. (À Berenice, relembrando) Eu, como não gosto de padre. E quando lembro da minha primeira comunhão, quando fui obrigado pelo Colégio a me confessar ao padre Luís Joaquim, lembra?
BERENICE – Lembro, sim.
ONIVLAKOVITCH (Irritado) – Pois o filho da puta perguntou, no confessionário: (Imitando o padre) “Diga os seus pecados, filho”.(Continua irritado) Como fiquei calado,com vergonha, porque eu não sabia qual pecado que havia cometido, o dito padre, logo adiantou: (Imitando novamente o padre) “Você é abestalhado? Não tocas “punheta”, não? Fala, menino bobo!” (Risos. Já mais calmo) Mandou eu rezar. Fiquei decepcionado. Até hoje, é este um dos motivos de não gostar de igreja. E outra: vim saber, depois deste dia, que tocar punheta era masturbação...
Risos
BERENICE (Mudando de assunto) – Deixa prá lá. Eu também não confio nessa gente...

FECHA A CORTINA


CENA III

CENÁRIO – O mesmo

ÉPOCA – Três anos depois

PROCISSÃO – Vê-se as beatas das associações religiosas e as meninas do catecismo portando velas, protegidas em cônicos de papel. Os homens, conduzindo o andor e outros, com hábitos das irmandades.

POVO

No céu, no céu, com minha mãe estarei...(coro)
Ave, Ave, Ave-Maria
Ave, Ave, Ave-Maria... (coro)

PADRE (Destacando-se na frente em voz alta) – Vestida de branco, ela apareceu, trazendo na cinta as cores do céu...

POVO

Ave, Ave... Ave-Maria...(coro)
A figura de Kalvinovitch aparece na frente do pórtico da igreja, com os braços levantados ao céu. O vento agitando suas vestes. O coro, sumindo, ouve-se o estribilho: “Queremos Deus que é nosso Pai”. As palavras de Kalvinovitch são inaudíveis, a imagem de Cristo continua com as mãos erguidas olhando para o céu.

CORRE O PANO LENTAMENTE

Ouve-se “Cânticos Religiosos”.  


CENA IV

CENÁRIO – O mesmo

ÉPOCA – Quatro anos depois

Ao abrir-se a cortina, vê-se o povo contente com a vitória dos candidatos escolhidos: Presidente da república, governadores, senadores e deputados federal/estadual. Vê-se ainda mesas de bar e uma fila de ônibus. Alguns mirins cheirando cola, pedindo esmolas e outros vendendo as suas pequenas mercadorias.

Tio, me dê um real. Tia, um real...

Uma cerveja, por favor.

Pipoca, olha pipoca, ahi, oh! êi! pipoca, ahi, oh!

Laranja, olha a laranja...

Amendoim torradinho e cozinhado...

Picolé, colé, colé, colé, picolé, colé, picolé...

Olha o relógio daquela mulher ali, ela não deu dinheiro...dá o bote e corre

passa prá mim. Aproveita, agora!

Vozearia

Gritos:

Ladrão, pega, pega...

POVO:

MA – Ladrão, pega ladrão, pega, pega esse ladrão.
HA - Cadê a polícia?
HB – Não estou vendo nada, nada, nesse governo! Está igual os outros!
HA – É a fome, a fome continua.
HB – É fim de mundo.
MC – Ninguém pode sair de casa.
HC – Mas, começou agora.
MC – Toda vez é isso !
HD – Só vai com o militarismo!
HB – Achou pouco os vinte anos no poder? Vocês não sabem o que dizem!
HA – Naquele tempo, não havia isso!
MA – E por que eles não continuaram? Vocês mesmos não quiseram eleições diretas, já? Vão pro inferno, aqui só vai é na guerra! Agora mesmo, fui roubada.

HB – O Brasil é rico, não precisa de guerras. Basta um governo sério.
HC – Então, vamos ter paciência, este começou agora.
MA – Mas, olha aí o que estamos vendo.
HC – Ah! Minha filha, não é assim como está pensando, não. Veja que vem por aí uma portaria para os jogadores (Voz alta):
“O MINISTRO DA JUSTIÇA ADVERTE: JOGAR É CONTRAVENÇÃO.”
MA – O ministro da economia deve baixar a dele também (Voz alta):
O MINISTRO DA ECONOMIA ADVERTE: JOGAR É PREJUDICIAL À ECONOMIA”.
HB – Conversa mais...

Risos

Ouve-se:

VOZ – Olha o bicho! Olha o bicho!
São vinte e cinco:  (...)


Dou nome aos bois?
HB – Conversa! “Só querem ser as calçolas de Odete”.
VOZ DE BÊBADO – Olha o Belia-a-a-al! Tá ruço! Agora, oh!, a merda vai virar boné!

HB – Você está conversando, é miolo de pote! Quem não gosta nada são os banqueiros. Ficam com a moléstia dos cachorros.
Risos
VOZ DE BÊBADO - A mim me sobra o cheiro da cerveja. A vida não é mais que uma troca de cheiros.
Este, deve ter lido “Se um viajante numa noite de inverno”, de Ítalo Calvino. Em seguida, interveio outro bêbado, que é coveiro.
OUTRO BÊBADO - A vida, você pode dizer, e também a morte. Para mim o cheiro da cerveja serve para tentar me tirar o cheiro da morte. No seu caso, só o cheiro da morte é que vai te livrar do cheiro da cerveja; como acontece com todos os bêbados de quem tenho de cavar a cova.
O personagem tomou esse diálogo como um aviso...
HB - Ah, vai tomar... vai. Cala essa boca!
VOZ DE BÊBADO (Irritando-se) - E daí, seu merda? O futuro, a Deus pertence!

Vozearia

HA – No futebol nós somos muito especiais, um país de “Primeiro Mundo”.

CARAS-PINTADAS – O Brasil ganhou na Copa, o plano real vai dar certo.

VOZ DO POVO:

Caia na real!

Cento e cinqüenta milhões de brasileiros unidos...

Caia na real!

Caia na real!

O “caneco” é nosso, somos tetracampeões do mundo.

Aonde vão guardar a taça?

Roubaram a Jules Rimet!

Não derreteram?

É uma vergonha. Agora vem a réplica, a legítima fica em cofre-forte, na

Suíça!

Pérfidos

É tetra, Brasil.

- Desse jeito, aonde iremos nós? Olha lá um grupo de crentes do “Paraguai”!
- Mataram o rapaz com trinta e três anos de idade, e hoje usam e abusam do nome dele. Aí é que está a hipocrisia desse povo. Os adesivos estão por aí nos carros: DEUS É FIEL! Valha-nos, Nossa Senhora!!!

Vozearia

Silêncio  

Apaga os refletores, vemos as lâmpadas apagadas nos postes. A cidade toda na escuridão. Ouve-se gritos:

POVO:

- Ladrão, pega, pega...
- Sim, pois, à polícia!
- Acossa essa gente...

Da praça da Independência, ouve-se a missa dos Quilombos:
“Rito Penitencial”
Rito Penitencial – Extraído da “Missa dos Quilombos”
Autores – participação: D. Pedro Casaldáliga
Pedro Tierra e Milton Nascimento.
(Coro-Cantado)
     
      (...)

HA  (Recitando)

FILME CHAMADO BRASIL
Estamos assistindo esse filme
Chamado Brasil!
Todos nós, sempre temos dito:
“Esse filme já passou”
Já dizia Machado de Assis:
“A hipocrisia é a solda que une a sociedade”.  

Quem nos ensinou viver assim?
No despertar de um novo horizonte...
Qual de nós sentirá recordação?
Será difícil reverter esse quadro!!!
Como diz Chico Buarque:
“De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser da outra”.
.(fora a mediocridade)!!!
Viva o Brasil!

CORRE O PANO
LENTAMENTE  






O Cristo Mulato 2 (teatro)



O Cristo Mulato 2


Por José Calvino de Andrade Lima


ATO II


CENA I


CENÁRIO – O mesmo do primeiro ato.

ANOS 80:


Ao abrir-se a cortina, a ação se passa na frente da igreja. Cristo Mulato, caminhando lento, como dirigindo-separa sentar-se num dos degraus da calçada. Traz uma mochila nas costas. Um rapaz se aproxima de Cristo e entrega-lhe uma carta. Cristo abre-a e fica muito contente, e se dirige ao orelhão. Tira o telefone do gancho e disca, começando a falar com voz inaudível. No momento em que desliga o telefone, cambaleia. de súbito, aparece o padre e o segura, sentando-o no meio fio da calçada da igreja.

CRISTO (Voz baixa) – Foi a sopa...
PADRE (Corta, irônico) – Não me digas que a tomou com sanduíche?!
CRISTO (Voz tremula) – Exatamente...

Silêncio

PADRE (Benévolo, rindo de soslaio) – Engraçado, por que não foi almoçar lá em casa?
CRISTO – Não gosto de dar trabalho...(Voz baixa) você não sabe...
PADRE (Corta) – Ora, ora, nada de trabalho. O que, que é isso? (Muito sério) Passou mal por causa do telefonema ou por causa da comida, hem?
CRISTO (Deprimido) – Desculpa?
PADRE (Benigno) – Está desculpado, meu pai. (Advertindo) Cuidado com aqueles palavrões com desrespeito ao governo...
CRISTO (Corta, com voz rouca) – Qual é o respeito que eles têm a nós? (Gritando com horror) Estou morrendo.
Expressão idêntica ao grande escritor russo Anton Tchekhov, só que Kalvinovitch disse em português e Tchekhov disse em alemão: “Ich Sterbe”...
PADRE – ...
CRISTO (Pausa. Com voz abafada ao padre, sorrindo) – Agora, entregue esta mochila à doutora Berenice, lá na... (desmaia)
PADRE (Alarmado) – O que é que o senhor tem?, diga.

Silêncio

Neste momento, o padre olha em derredor, estão os meninos e meninas pobres da cidade.

MENINOS DE RUA (Num só coro) – MORREU.

O padre se benze. Em seguida, telefona do orelhão para a Biblioteca do Fórum. Ouve-se Réquiem de Denisov e Cantos e danças da morte de Petróvitch Mússorgski.

PADRE (Voz abafada ao telefone) – Por obséquio, o endereço da doutora Berenice.

Vozearia
Silêncio

Jogo de cena muda. O padre desliga o telefone, fica um tempo imóvel, fazendo menção como quem quer dirigir-se para a porta de entrada da igreja. Depois, resolve sair às pressas, com a mochila em direção à rua.

Obs: As músicas Réquiem e Cantos e danças da morte, ficam a critério da direção.

FECHA O PANO
CENA II
CENÁRIO – O mesmo da primeira cena.
Época – Um dia depois.

Ao abrir-se o pano é manhã. O sol ilumina toda a igreja, ouve-se as badaladas dos sinos e “O Sino dos Mortos” de Ropartz. Vê-se um caixão de defunto saindo da igreja, sendo conduzido por seis pessoas, e alguns acompanhando o féretro. Cristo Mulato está morto! Ouve-se uma música fúnebre e cânticos religiosos, pouco a pouco saindo de cena o cortejo fúnebre. Algumas pessoas ficam nos degraus e outras no adro e nas calçadas. Formam grupos na rua a conversarem.

Obs: Fica a critério da direção as músicas fúnebres e os cânticos religiosos.

Vozearia

ONIVLAKOVITCH – Cristo Mulato escreveu o seu livro com o pseudônimo de Kalvinovitch Amilov!

POVO:

HOMEM 1 – Ele era um homem bom.
MULHER 1 – Sofreu muito por nós.
MULHER 2 – Ele amava o nosso Brasil.

ALTO FALANTE (Voz de homem) – “Então, se alguém vos disser: Eis aqui o cristo!, ou: Ei-lo ali! Não acrediteis; pois surgirão falsos cristos e falsos profetas, operando sinais e prodígios, para enganar, se possível, os próprios eleitos”. (MC – 13:21 e 22)

HOMEM 2 – Vocês ouviram? Ele era um falso profeta!
MULHER 1 – Ele nunca disse ser o Cristo Jesus, ele gostava mais que o chamassem de Kalvinovitch.
HOMEM 1 – E ele nunca enganou ninguém, e morreu defendendo esta pátria governada por ladrões!
MENINOS (Num só coro) – “Cristo morreu”!
MULHER 2 – É o destino de todos nós.
MULHER 1 – País de sofrimento (Pausa) ingrato!
HOMEM 1 – País dos corruptos, como são grandes os escândalos...
PADRE –...
BERENICE – ...
ONIVLAKOVITCH – Continuaremos a luta... (Pausa) Aqueles dois majores da polícia provocaram tudo isto! (Revoltadíssimo) Digo os nomes deles, sem medo de errar...
BERENICE (Corta, revoltada) – Nem diga, que me causa nojo os nomes desses imbecis. Não merecem sair no livro de grande porte. Saindo, é promoção prá eles. Está no prelo o segundo livro de Kalvinovitch. Sairá lá para outubro ou novembro. Não sai agora por causa destas propagandas políticas. As editoras gráficas estão cheias de serviço.
ONIVLAKOVITCH - E o teatro, vamos terminar?
BERENICE – Vamos, sim. Kalvinovitch fez tudo direitinho, e pede para você dar prosseguimento aos seus trabalhos com o resultado do novo governo! ele escreveu pouco sobre os CRISTOS brasileiros.
ONIVLAKOVITCH – Eu já li os manuscritos dele. São ótimos...(pausa) eu sou suspeito... (Risos) O seu quociente de inteligência (QI) era muito elevado e...
PADRE (Corta) – Ele escreveu até o mês passado.
ONIVLAKOVITCH – O meu dever será cumprido.
BERENICE – Sim, você está pensando bem. Dê continuidade, mesmo. O nosso povo tem que assistir a esta peça. É de lei.
ONIVLAKOVITCH – Eu estou esperando as eleições para presidente da República e vamos ver quem será eleito, se vai ou não fazer um bom governo.
PADRE – Deus ouvirá as nossas súplicas. Aguardaremos.
BERENICE – Irei, agora mesmo, buscar o teatro de Kalvinovitch e dar uma pressa no romance. Época de campanha política é parada, é fogo esta gente...
ONIVLAKOVITCH (Corta) – É isto aí. Depois, você me entregue.
BERENICE – Tchau, gente (Sai)

Os dois trabalhos selecionados encontrados na mochila de Kalvinovitch apenas são lidos pelos personagens (Onivlakovitch e Berenice). “Os sonhos” são encenados a critério da direção.

(Voz alta) - NEGRO BRASILEIRO
(Voz) – Fonte de alguns dados em: O GENOCÍDIO DO NEGRO BRASILEIRO, de Abdias do Nascimento.

Entra primeiramente Onivlakovitch...

(...)

Fundo Musical: (Música concreta).

FECHA A CORTINA
LENTAMENTE
FIM DO SEGUNDO ATO

O Cristo Mulato (teatro)



O Cristo Mulato(Teatro)
Por José Calvino de Andrade Lima



- Primeiro ato do livro homônimo do autor, publicado em 1982/1994/2006 -

ATO I

CENA I

CENÁRIO



Igreja antiga de uma cidade do interior. Em frente, uma pequena calçada com três
degraus. Nos dois lados da igreja vê-se fachadas das casas estilo barroco, à esquer-
da vê-se um imenso terreno matagoso cortado pela estrada de ferro, com postes te-
legráficos ao lado da linha. À direita, se vê um orelhão. E, mais adiante, uma estação
de trem. Vê-se ainda lampiões nos postes e na maioria das casas.

ANOS 70:

Ao abrir-se o pano, vemos um grupo de jovens estudantes junto ao povo. Alguns estudantes procuram apedrejar os ônibus. Vê-se ainda outros revoltosos com paralelepípedos nas mãos. O líder do grupo impede, procurando acalmar os ânimos e evitar cenas de violência. O jovem líder se chama Kalvinovitch. Ouve-se canções de protesto de Blitzstein (música de caráter patriótico) ou outra canção. As músicas ficam a cargo do(a) diretor(a).
KALVINOVITCH (Em voz alta, irritado) – Assassinos, ladrões, vivem a roubar o dinheiro do povo!

POVO REVOLTADO:

H1 – Estou arretado da vida, aqueles investigadores apreenderam os meus livros de estudos sobre o cubismo, eles confundiram com Cuba de Fidel Castro!

Risos

H2 – São uns analfabetos, coitados, eles até que não têm culpa, os comandantes deles sim, como os PMs que estão pintando miséria no centro da cidade. Será que a cúpula não sabe?
H3 – O que é pior é que o Exército está jogando as polícias ao nosso encontro, responsabilizando-os perante à sociedade e à opinião pública.
H1 – Aquele sargento do Exército que está na reserva agora só anda fardado de segundo tenente com um “pingalim”'ª' na mão! Ele está como chefe da segurança da estrada de ferro. Lá está uma verdadeira delegacia de polícia, a tabica come no centro. Ele vive alcagüetando os ferroviários lá no IV Exército, sabia?

'ª' Pingalim, castanho ou preto, usado facultativamente por Oficial, subtenente e Sargento nos uniformes, previsto no Regulamento de Uniforme Militar. Somente Oficiais e Praças possuidores do Curso da Escola de Equitação do Exército poderão usar o pingalim preto.
_________________________

H2 – Sei, ele tem toda cobertura do IV Exército, nem oficial ele é! E outra, ele é amicíssimo do jornalista, que era editor geral do Jornal da Cidade na época quando houve o golpe de sessenta e quatro, sabia também?
H1 – Eu sei de tudo – Agora, homem mesmo, cabra macho, é Gregório Bezerra, que foi torturado pelo tenente-coronel Villocq lá em Casa Forte. Apanhou até de rebenque...
H2 (Corta) – Mas vamos deixar isso prá lá, o bom é que tem oficiais do Exército que são homens de bem, como por exemplo o tenente-coronel Ruy Vidal de Araújo, comandante do catorze RI, major Joaquim Gonçalves Vilarinho Neto e outros. O coronel Vidal mesmo, é um gaúcho muito educado e espírita, foi ele quem liberou os presos inocentes que conduziam para o 14 (catorze), como foi o caso do Cristo Mulato, que foi preso sem fazer nada, somente por causa de informes mentirosos! São perversos esses militares. O coronel Vidal é tão educado, que pediu desculpas aos presos políticos no 14, por haverem passado a noite em lugar impróprio, os mesmos tinham direito a “prisão especial”. E o major Vilarinho Neto também é um homem muito educado e está prá ser comandante da “meganha”. Eu tenho certeza de que ele será um ótimo comandante!
M1 – Bom, como querem os arbitrários militares que a gente cumpra a lei, com esta esculhambação toda, salário de fome deste? O ministro mandando a gente apertar o cinto, que vergonha nacional!
H1 – O povo, unido, jamais será vencido. Já pensou naquele povo que acompanha “O Galo da Madrugada”, revoltado?
M1 Bastaria a metade daquela gente para se rebelar contra este desgoverno que aí está.

Vozearia.
Neste momento, a praça é subitamente invadida por tropas da polícia, soldados com armas na mão. Sob o comando de um Oficial Superior. Ouvem-se tiros, intermitentes sirenes das viaturas das polícias civil e militar! Kalvinovitch é preso e conduzido para o xadrez.

FECHA A CORTINA

CENA II

CENÁRIO – O mesmo da primeira cena.
Época – Vinte e nove anos passados/1941.

Ao abrir-se a cortina, vemos a plataforma da estação. O Chefe da Estação conversando com uma moça negra e um guarda-freios. Ouve-se o eco do apito da locomotiva e o seu rugido.

CHEFE DA ESTAÇÃO – Quem é esta moça?
GUARDA FREIOS – Foi o coroné Chico quem mandou eu entregar ao “Diabo Louro”, para arranjar emprego prá ela.
CHEFE DA ESTAÇÃO – Diga ao doutor João Roma que estou precisando de uma empregada. (Amável à negra) Quer ficar comigo?
NEGRA (Contente, esperançosa) – Quero, sim senhor, o senhor não vai deixar o “Diabo louro” tirar o meu filho do mundo, vai não, vai?
CHEFE DA ESTAÇÃO – Filho do mundo, que história é essa?
NEGRA (Chorando com soluços) – Estou grávida e quero que o meu filho nasça.
CHEFE DA ESTAÇÃO (Compreendendo) – Não se preocupe que o doutor João Roma é um homem da lei, e não um diabo. (Enérgico ao guarda-freios) Olhe, não chame o doutor de diabo, ouviu? Outra coisa, você realmente ia levá-la prá onde?
GUARDA FREIOS – Chefe, pelo amor de Deus, não diga nada ao... (Gaguejando) dô-dô-dôtô...
CHEFE DA ESTAÇÃO (Corta) – Doutor João Roma.
GUARDA FREIOS (Arrependido) – Eu ia pro-pro-vi-den-ciar na-na rua da-da-guia o aborto.
CHEFE DA ESTAÇÃO (Compreendendo) – Já sei, a moça, de agora em diante, é minha empregada. Prometo não dizer nada ao doutor e você diga ao coronel Chico que tudo foi providenciado.

O Chefe da estação providencia a licença e manda dar partida ao trem, e sai com a negra em direção à sua casa.

GUARDA FREIOS (Retira-se) – Mui-mui-to obri-ga-ga-do!

Ouve-se o eco do apito do trem, distante.

FECHA O PANO LENTAMENTE

CENA III

CENÁRIO – O mesmo das cenas anteriores.
Época – Meses depois.

Ao abrir-se o pano – Casa do Chefe da Estação, o Chefe da Estação conversando com o português e a negra prenhe.

CHEFE DA ESTAÇÃO – Você quer se casar. Ela é uma menina muito direita, e o problema está na vista, você já sabe. a responsabilidade é grande.
PORTUGUÊS (Ansioso, à negra) – Você quer se casar comigo?
NEGRA (Consigo mesma, ansiosa) – Não, não acredito, um homem branco, português, querendo se casar logo comigo, uma mulher de cor, uma negra? (Levanta-se contente) – Muito obrigada, eu aceito, mas com a seguinte proposta: ir residir em Nazaré, para tirar a minha mãe do Engenho. Promete fazer isto?
PORTUGUÊS – Prometo. Viajaremos amanhã bem cedinho, no trem das seis e trinta, combinado? Olhe que tudo está sendo acordado na frente do chefe.
NEGRA (Sorridente) – Combinado.
CHEFE DA ESTAÇÃO – Sejam felizes. Amanhã deixarei vocês no trem.

Saem. Ouve-se uma canção de amor.

FECHA A CORTINA



FIM DO PRIMEIRO ATO