O Cristo Mulato 4
(Teatro)
Por José Calvino
A CLASSE TRABALHADORA ESTÁ SENDO BOMBARDEADA POR CONSTANTES INJUSTIÇAS, E TREMENDAMENTE PREOCUPADO FICO EU QUANDO PENSO QUE MILHARES DE PESSOAS, COMO VOCÊ, AINDA PASSAM POR TAIS SITUAÇÕES.
PEÇA EM QUATRO ATOS E DEZ CENAS,
BASEADA NOS ANOS 40, 70, 80, 90 e 2000.
IDEM DO LIVRO HOMÔNIMO DO AUTOR
Personagens
O Cristo Mulato/Kalvinovitch
Onivlakovitch
Padre
Berenice
Chefe / Estação
Negra
Guarda-freios
Português
“Meganhas”
Povo
Bailarinos (as) Passistas
Quarto Ato
ATO IV
CENA I
CENÁRIO – O mesmo
ANOS 2000
Ao abrir-se o pano, vemos as lâmpadas acesas nos postes. A cidade toda iluminada alguns jovens revoltados:
JA – Por que as autoridades sanitárias não conseguiram, até agora, sanear os bairros do Recife e Olinda?
JB – Eu quero ver se o povo vai continuar suportando tantas muriçocas, em suas casas. Sinceramente, com esse racionamento de energia, desligando o ar refrigerado e os ventiladores, o calor será insuportável. Como vamos nos defender desses insetos, nessa época do ano, especialmente à noite?
JC – Praticamente, este ano não houve inverno (2001) ninguém agüenta os mosquitos com esse anunciado racionamento de energia elétrica.
JÁ – Vem outra eleição por aí. O povo agora vai votar no candidato popular...
JC – Agora é tarde, ele irá fazer o mesmo dos antecessores!
Vozearia
Escurece
Silêncio
Acendem-se os refletores em resistência. Ouve-se o canto do galo. É carnaval. Termina a peça, igualmente à de “Trem & Trens”. O palco todo iluminado. Entra em cena o povo, brincando com os rostos e os corpos pintados de urucum. Foliões com garrafas de batidas, passistas, agremiações carnavalescas, blocos, maracatus, etc. Ouvem-se frevos, sambas...(músicas de carnaval).
CORRE O PANO
LENTAMENTE
Ouve-se “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso)
FIM DO QUARTO E ÚLTIMO ATO.
È vedada qualquer representação desta peça
em teatro, rádio ou televisão, assim como a sua
reprodução, total ou parcial, sem a prévia
autorização do autor.
em teatro, rádio ou televisão, assim como a sua
reprodução, total ou parcial, sem a prévia
autorização do autor.
Terceiro Ato
ATO III
CENA I
CENÁRIO – O mesmo dos atos anteriores
ANOS 90:
Ao abrir-se a cortina, pela metade, lentamente, é noite e se vê a igreja fechada. Onivlakovitch, envelhecido, de barba, junto com o povo. Assiste na praça à vitória do candidato Collor. Ouve-se o Frevo-canção “Carnaval da Torre” (Do autor) 1.
“Recife cidade linda” (Do autor) 2.Observação necessária: Este Ato é a continuação do teatro “Trem & Trens”.
Vozearia
A cortina se abre, agora, totalmente.
POVO:
HI – Vitória, vitória!
HII – Agora o Brasil tem um presidente honesto.
1-2- Gravado em discos – fev/mar, 2003 –Voz do autor.
HIII – A equipe econômica do governo está com uma ministra inteligente!
MI – Zélia Cardoso confiscou o nosso dinheiro!
HI – Tem que ser assim.
MI – Eu não concordo, eu tinha na poupança cento e cinqüenta mil, isto é lá dinheiro para confiscarem? Me prejudicou todinha. E mesmo, isto é furto. (Revoltada) O presidente é um ladrão de marca maior!
MII – Mas ele devolverá com juros e correção monetária. Isto é só no começo, depois melhora.
HIV – Ele não tem o direito de lançar mão no nosso dinheiro, o povo não entende!
MI – Eu entendo, sim. Color é um ladrão, isto sim é o que ele é!
HI – Rapaz, ele começou agora. Vamos ser solidários.
HII– Disseram que Lula iria fazer o mesmo.
MII – Ah!, isto ninguém duvide. Vamos prá frente, eu vou rezar para que tudo dê certo. É claro que eu vou torcer para o bem do Brasil.
HIV – O meu pai sempre dizia: “Não é gaiola bonita que dá de comer a canário.” Vamos prá frente, oxalá que dê certo. Não acredito, começou errado, plantando mal, irá colher o quê?, mas... vamos ver.
FECHA O PANO LENTAMENTE
CENA II
CENÁRIO – O mesmo.
Época – Dois anos depois.
Ao abrir-se o pano, vê-se os jovens com as caras-pintadas. O povo revoltado, com faixas. A imprensa falada, escrita e televisada, em ação.
Para não virar “coqueluche” vide livros, jornais, revistas, etc. Que enriquecerá esta peça referente aos escândalos existentes no nosso país com alguns políticos, militares, religiosos, policiais,et cétera et cétera, envolvidos.
POVO:
Impeachment!
Impeachment!
Queremos Deus 95.
Queremos o impedimento do presidente!
Impeachment!
Cadeia!
ONIVLAKOVITCH (Otimista) – Agora, com este arrastão de corruptos, eu quero ver se o povo não toma vergonha. Não irei citar os nomes, porque já são tão divulgados pela imprensa, que dá até nojo citar. Mas vocês sabem os escândalos que vêm se alastrando por aí. Agora é com vocês. Na próxima eleição para presidente, governador, senador, deputado, tudo, tudo, vocês devem saber qual deve ser a opção.
BERENICE – E o candidato do governo é filho de general, já pensou?
ONIVLAKOVITCH – E tem gente que irá votar porque é candidato do governo! Como se fosse obrigado votar somente no candidato deles!, prá dar certo. E sempre dando errado! Eu ontem ouvi um dizendo que vai votar em Lula para o Exército tomar conta. Não é um imbecil?
BERENICE – E como! Será que o nosso povo não está vendo que tudo isto que está havendo foram os militares que provocaram? E que o Itamar está sendo um boneco nas mãos deles?
ONIVLAKOVITCH – E ele era vice de quem? Será que não é farinha do mesmo saco?
Risos
BERENICE – Agora vem o horário eleitoral, o povo ainda vai na conversa!
ONIVLAKOVITCH – Se o nosso povo é analfabeto e semi-analfabeto, o que nós podemos fazer?, é esperar o resultado das eleições. Depois de eleitos, se não fizerem nada em prol do povo, esse mesmo povo se preparará para uma revolução, com certeza. Prá mim, foi o último plano que eles fizeram. Se não der certo, a real moeda realmente...
BERENICE (Corta) – A revolução está garantida neste caso, infelizmente, o que será para o nosso tão sofrido povo brasileiro? Será uma pena, uma decepção eles não se conscientizarem de que não devem fazer empréstimos abusivos, colocando a culpa no povo. Será o caos! Você, Onivlakovitch, como irmão de Kalvinovitch, de criação, é claro, que eu já estou sabendo, desculpa a minha franqueza, ele era o meu confidente, tudo muito bem, mas nunca revelou se era comunista, o que achas disso? E você, finalmente, é também?
ONIVLAKOVITCH – Olha rapaz, não pertenço a nenhum partido político, nem tão pouco Kalvinovitch pertencia. Agora, eu estou achando uma infantilidade sua fazer este tipo de pergunta, logo a mim. Agradeço a confiança porque você sabendo eu ser um policial militar, embora da reserva, poderia ficar inibida em perguntar, mas uma coisa eu lhe digo: Kalvinovitch era um homem revoltado com o sistema de governo. Eu, idem. Então, se o comunismo não presta para esses ladrões de gravata, eu neste caso tenho minhas dúvidas, embora que nem eu nem Kalvinovitch sabíamos o que é comunismo. E você, lendo o livro dele, vê que é um conúbio literário, referente à vinda da mãe dele ao Arraial, à morte, às suas prisões, tudo enfim. Pergunto, eu: e você, é comunista?, desculpe também.
BERENICE – Sou simpatizante, embora eu não goste de nenhum regime ditatorial. A democracia é o ideal para nós, apesar de quê, o que vejo aqui é uma falsa democracia. Apenas a capa, para enganar aos brasileiros obrigando-os a votar, os jovens a servirem ao Exército, a votarem, também, analfabetos, sujeitos ao voto de cabresto e, assim, se vai a nossa falsa democracia! E a minha infantilidade, justamente, era saber da realidade e confidenciar a você, que estou pronta para ser sua confidente, como era com Kalvinovitch. Sim, eu ia esquecendo: também não pertenço a nenhum partido público, nem tenho religião, e tenho as minhas dúvidas quanto à existência de Deus.
ONIVLAKOVITCH – Querida doutora, mais uma vez muito obrigado pela confiança e ser de agora em diante o seu confidente e vice-versa. Muita sorte sua ter tido um confidente de um quilate como irmão Kalvinovitch. Sobre religião, eu também não tenho. A minha conversa com o padre é por causa de Kalvinovitch. É ele quem sempre nos procura. Pergunto, o que achas do padre Benigno?
BERENICE (Sorri) – Não é de muita confiança...
ONIVLAKOVITCH (Corta) – Eu mesmo não confio nesse povo, o meu irmão ainda gostava, não sei porque. Por isso eu disse, antes, que ele era um homem revoltado, foi muito prejudicado, até mesmo pelo Vaticano! Agora, eu fico assim sem jeito, mas religião é assim mesmo!, a fé é que é importante. Gente de fé, eles exploram. Esse povo inocente! Mas, assim mesmo, é bom eles fazerem as suas romarias. O povo cantando com fé religiosa!...
BERENICE (Esperançosa) – Vamos ver se o Deus deles olha para o nosso Brasil.
ONIVLAKOVITCH – Oxalá, irmã. (À Berenice, relembrando) Eu, como não gosto de padre. E quando lembro da minha primeira comunhão, quando fui obrigado pelo Colégio a me confessar ao padre Luís Joaquim, lembra?
BERENICE – Lembro, sim.
ONIVLAKOVITCH (Irritado) – Pois o filho da puta perguntou, no confessionário: (Imitando o padre) “Diga os seus pecados, filho”.(Continua irritado) Como fiquei calado,com vergonha, porque eu não sabia qual pecado que havia cometido, o dito padre, logo adiantou: (Imitando novamente o padre) “Você é abestalhado? Não tocas “punheta”, não? Fala, menino bobo!” (Risos. Já mais calmo) Mandou eu rezar. Fiquei decepcionado. Até hoje, é este um dos motivos de não gostar de igreja. E outra: vim saber, depois deste dia, que tocar punheta era masturbação...
Risos
BERENICE (Mudando de assunto) – Deixa prá lá. Eu também não confio nessa gente...
FECHA A CORTINA
CENA III
CENÁRIO – O mesmo
ÉPOCA – Três anos depois
PROCISSÃO – Vê-se as beatas das associações religiosas e as meninas do catecismo portando velas, protegidas em cônicos de papel. Os homens, conduzindo o andor e outros, com hábitos das irmandades.
POVO
No céu, no céu, com minha mãe estarei...(coro)
Ave, Ave, Ave-Maria
Ave, Ave, Ave-Maria... (coro)
PADRE (Destacando-se na frente em voz alta) – Vestida de branco, ela apareceu, trazendo na cinta as cores do céu...
POVO
Ave, Ave... Ave-Maria...(coro)
A figura de Kalvinovitch aparece na frente do pórtico da igreja, com os braços levantados ao céu. O vento agitando suas vestes. O coro, sumindo, ouve-se o estribilho: “Queremos Deus que é nosso Pai”. As palavras de Kalvinovitch são inaudíveis, a imagem de Cristo continua com as mãos erguidas olhando para o céu.
CORRE O PANO LENTAMENTE
Ouve-se “Cânticos Religiosos”.
CENA IV
CENÁRIO – O mesmo
ÉPOCA – Quatro anos depois
Ao abrir-se a cortina, vê-se o povo contente com a vitória dos candidatos escolhidos: Presidente da república, governadores, senadores e deputados federal/estadual. Vê-se ainda mesas de bar e uma fila de ônibus. Alguns mirins cheirando cola, pedindo esmolas e outros vendendo as suas pequenas mercadorias.
- Tio, me dê um real. Tia, um real...
- Uma cerveja, por favor.
- Pipoca, olha pipoca, ahi, oh! êi! pipoca, ahi, oh!
- Laranja, olha a laranja...
- Amendoim torradinho e cozinhado...
- Picolé, colé, colé, colé, picolé, colé, picolé...
- Olha o relógio daquela mulher ali, ela não deu dinheiro...dá o bote e corre
passa prá mim. Aproveita, agora!
Vozearia
Gritos:
- Ladrão, pega, pega...
POVO:
MA – Ladrão, pega ladrão, pega, pega esse ladrão.
HA - Cadê a polícia?
HB – Não estou vendo nada, nada, nesse governo! Está igual os outros!
HA – É a fome, a fome continua.
HB – É fim de mundo.
MC – Ninguém pode sair de casa.
HC – Mas, começou agora.
MC – Toda vez é isso !
HD – Só vai com o militarismo!
HB – Achou pouco os vinte anos no poder? Vocês não sabem o que dizem!
HA – Naquele tempo, não havia isso!
MA – E por que eles não continuaram? Vocês mesmos não quiseram eleições diretas, já? Vão pro inferno, aqui só vai é na guerra! Agora mesmo, fui roubada.
HB – O Brasil é rico, não precisa de guerras. Basta um governo sério.
HC – Então, vamos ter paciência, este começou agora.
MA – Mas, olha aí o que estamos vendo.
HC – Ah! Minha filha, não é assim como está pensando, não. Veja que vem por aí uma portaria para os jogadores (Voz alta):
“O MINISTRO DA JUSTIÇA ADVERTE: JOGAR É CONTRAVENÇÃO.”
MA – O ministro da economia deve baixar a dele também (Voz alta):
“O MINISTRO DA ECONOMIA ADVERTE: JOGAR É PREJUDICIAL À ECONOMIA”.
HB – Conversa mais...
Risos
Ouve-se:
VOZ – Olha o bicho! Olha o bicho!
São vinte e cinco: (...)
Dou nome aos bois?
HB – Conversa! “Só querem ser as calçolas de Odete”.
VOZ DE BÊBADO – Olha o Belia-a-a-al! Tá ruço! Agora, oh!, a merda vai virar boné!
HB – Você está conversando, é miolo de pote! Quem não gosta nada são os banqueiros. Ficam com a moléstia dos cachorros.
Risos
VOZ DE BÊBADO - A mim me sobra o cheiro da cerveja. A vida não é mais que uma troca de cheiros.
Este, deve ter lido “Se um viajante numa noite de inverno”, de Ítalo Calvino. Em seguida, interveio outro bêbado, que é coveiro.
OUTRO BÊBADO - A vida, você pode dizer, e também a morte. Para mim o cheiro da cerveja serve para tentar me tirar o cheiro da morte. No seu caso, só o cheiro da morte é que vai te livrar do cheiro da cerveja; como acontece com todos os bêbados de quem tenho de cavar a cova.
O personagem tomou esse diálogo como um aviso...
HB - Ah, vai tomar... vai. Cala essa boca!
VOZ DE BÊBADO (Irritando-se) - E daí, seu merda? O futuro, a Deus pertence!
Vozearia
HA – No futebol nós somos muito especiais, um país de “Primeiro Mundo”.
CARAS-PINTADAS – O Brasil ganhou na Copa, o plano real vai dar certo.
VOZ DO POVO:
- Caia na real!
- Cento e cinqüenta milhões de brasileiros unidos...
- Caia na real!
- Caia na real!
- O “caneco” é nosso, somos tetracampeões do mundo.
- Aonde vão guardar a taça?
- Roubaram a Jules Rimet!
- Não derreteram?
- É uma vergonha. Agora vem a réplica, a legítima fica em cofre-forte, na
Suíça!
- Pérfidos
- É tetra, Brasil.
- Desse jeito, aonde iremos nós? Olha lá um grupo de crentes do “Paraguai”!
- Mataram o rapaz com trinta e três anos de idade, e hoje usam e abusam do nome dele. Aí é que está a hipocrisia desse povo. Os adesivos estão por aí nos carros: DEUS É FIEL! Valha-nos, Nossa Senhora!!!
Vozearia
Silêncio
Apaga os refletores, vemos as lâmpadas apagadas nos postes. A cidade toda na escuridão. Ouve-se gritos:
POVO:
- Ladrão, pega, pega...
- Sim, pois, à polícia!
- Acossa essa gente...
Da praça da Independência, ouve-se a missa dos Quilombos:
“Rito Penitencial”
Rito Penitencial – Extraído da “Missa dos Quilombos”
Autores – participação: D. Pedro Casaldáliga
Pedro Tierra e Milton Nascimento.
(Coro-Cantado)
(...)
HA (Recitando)
FILME CHAMADO BRASIL
Estamos assistindo esse filme
Chamado Brasil!
Todos nós, sempre temos dito:
“Esse filme já passou”
Já dizia Machado de Assis:
“A hipocrisia é a solda que une a sociedade”.
Quem nos ensinou viver assim?
No despertar de um novo horizonte...
Qual de nós sentirá recordação?
Será difícil reverter esse quadro!!!
Como diz Chico Buarque:
“De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser da outra”.
.(fora a mediocridade)!!!
Viva o Brasil!
CORRE O PANO
LENTAMENTE