O Pai do Chupa*
Em fevereiro, de 1937, Miguel Rodrigo Carrasqueiro chega ao
Recife, com seus vinte e cinco anos de idade, devido à inquietação econômica e
política na Espanha, que culminou com a rebelião do Exército, sob a liderança
do general Franco. A revolta precipita a guerra Civil Espanhola. As forças do
general Francisco Franco têm o apoio da Alemanha nazista e da Itália
fascista... Nesse ínterim, Miguel Rodrigo foge para a França devido à
impopularidade do ditador Franco.
Miguel Rodrigo Carrasqueiro entrouxou as melhores roupas e
toda a sua economia – arranjara documentos “frios” como emigrante italiano – em
uma gráfica de Paris, que imprimia também passaportes e outros documentos
falsos e resolveu viajar para o Brasil de que contavam tantas maravilhas...
principalmente o carnaval do Recife, considerado o melhor do mundo...
Miguel Rodrigo, recém chegado, hospedou-se num dos quartos
da rua da Praia. Passando pelos arredores do Mercado de São José conheceu uma
menina-moça que perambulava pelas ruas e vielas do bairro de São José. Tinha o
vício de pequenos furtos, devido à necessidade de sobreviver, pele queimada do
sol, filha de um negro pescador do Pina, suja, cabelos em desalinho, uma marca
de coração na coxa direita, feita de óleo da castanha de caju. Trajando vestido
de chita, comia ovos podres e “Caboge” (galinhas mortas que vinham nos garajaus).
Seria aquele encontro a origem da felicidade de ambos? Era carnaval no Recife.
Miguel Rodrigo não sabia brincar carnaval, fazer o passo do frevo pernambucano, mas a
menina-moça o ensinava e foram brincar na rua Nova, Imperatriz, Concórdia...
olharam o corso, Recife era considerada a capital do frevo. Eles perambulavam
pelas ruas e avenidas, ora fazendo o passo, ora andando abraçados beijando-se.
Ele virava de lado o Prada, imitando um toureiro. Ao passarem na Avenida 10 de
Novembro (atual Av. Guararapes) levaram um banho de talco e foram melados de
batom. No ruge-ruge da folia furtaram o chapéu Prada de Miguel Rodrigo. Mas,
não foi por isso que desanimou. Eles resolvem comprar talco e uma caixa de
lança-perfume Rodouro, contendo três tubos para brincarem os três
dias de carnaval. Pintaram os rostos de carvão e brincaram até cansarem. Logo
após, foram descansar no Cais do Chupa e, lá, fizeram amor e dormiram no Areal.
Pela manhã, ao nascer do sol, acordam. Mais tarde, ficaram assistindo de longe
a draga chupar a areia, aumentando o calado. O Cais era desabitado, estava um
dia ensolarado e vinha embarcações de Goiana, Sapé, São Francisco... carregados
de carvão vegetal, melancia, abacaxi, et cétera. Foram ao Cais do Abacaxi
próximo ao do Chupa (hoje Cais de Sta Rita) e lá chuparam abacaxi à valer,
depois foram até o Mercado de São José, tomaram café e tiraram uma foto no lambe-lambe.
Depois foram ao comércio fazer compras:um chapéu panamá para ele e um de feltro
para ela, boinas, anáguas, sapatos, xales manuais de crochês e tricôs
(...),etc. Quando saíram da loja compraram no Mercado de São José um quepe
branco e um diadema com uma pluma colorida e, depois, seguiram pela rua Padre
Muniz e resolveram, subir a um “rendez-vous” barato.
- Edilza vai ganhar uma comissão boa, não é, dona Cosma?
- Vá tomar no olho do cu! – era a dona do prostíbulo
conhecida como “Mãe Branca”, que não gostava que a chamassem pelo nome – Aqui
mando eu! Quem
manda você não arranjar turista? Só esses pé rapado do
Mercado... – ficando nas pontas dos pés – e digo uma coisa: se você bolir com
Edilza e repetir de novo o que disse você não entra mais aqui, ouviu?
-...
Edilza dá um puxão tão forte no braço de Miguel Rodrigo, que
os pacotes de roupa caem no chão junto com a caixa de lança-perfume. Edilza
apanha e segue para o quarto, sendo acompanhada por Miguel Rodrigo atônito,
pensando: “”Isto é um rendez-vous de putas! Um perigo estas raparigas...”
Era uma terça feita, último dia do carnaval. Miguel Rodrigo
e Edilza saem vestidos de foliões. Ele, sem suspensório – os jovens da época
logo aderiram à nova moda.
Miguel Rodrigo e Edilza ambos, de lança-perfume, ele olhando
os seios dela pela blusa quase transparente, molhando os bicos dos peitos da
moça percebia ficarem rígidos, dado à frieza do éter que continha na
lança-perfume. Ela sentia-os pulsar e pegou a sua também e lançou em sua
virilha, que já dava para notar o seu membro endurecido. Beijaram-se em plena
avenida 10 de Novembro.
Miguel Rodrigo e Edilza, à noite, iam mais das vezes ao Cais
do Chupa. Edilza reconhecia o desejo de manter relações sexuais com Miguel
Rodrigo, pois sabia que o estrangeiro era a sua felicidade. Amava-o e lembrava sempre
que a sua primeira noite fora no Cais-do-Chupa, quando ali chegaram excitados
às vinte e três horas, em plena folia de carnaval. Miguel Rodrigo sujo de
talco, ela idem e de batom por todo rosto. Beijaram-se, ouvindo de longe
músicas carnavalescas. Uma delas ficou bem na memória de ambos: “Carnaval da Torre”
Recife é uma nova Roma/ Que comanda
o nosso carnaval/ Estamos na “Torre de Babel”/ Fazendo passo embaixo do
“Arranha céu”// Venha de pé, de carro ou de trem/
No caminho não pare pra ninguém/ Recife
espera com grande animação/ O povão na sua locomoção// No fantástico três dias
de folia/ A fantasia do folião está em cena/ Desfilando no meio da confusão/ No
passo da grande multidão// Quando o frevo se animar/ A platéia inteira vai
vibrar/ Vendo o “negão” dar uma de mestre/ Fazendo passo como um “cabra da
peste”...
Cavaram com as próprias mãos um
buraco não muito profundo no areal. Durante a noite, no areal, não se via um
pé-de-pessoa. Edilza deitava-se sobre Miguel Rodrigo, confiava no seu macho. Excitados,
fizeram amor: ora fora do buraco, ora dentro do buraco. Já eram quatro e meia
da manhã e as luzes da cidade estavam se apagando junto com os letreiros
luminosos, e retornaram a amar... Lá, eles contemplavam os maçaricos pousarem
no médão e as andorinhas, que roçavam a
superfície da água. Aquele grande espetáculo que a natureza oferecia dava uma
sensação de felicidade a ambos. Estendiam-se na areia, nus...
- Estamos livres como os
passarinhos – disse Edilza.
“ É lindo ver os vôos das gaivotas
sobre as ondas do mar” – pensou Miguel Rodrigo Carrasqueiro, sorrindo.
Em 1945, Miguel Rodrigo e Edilza
comemoram no Pina o fim da segunda Guerra Mundial, que tanto os prejudicava
como também a todo mundo!
Miguel Rodrigo já havia liquidado o
quarto da rua da Praia e levado a sua maleta para a nova moradia. Limpava
impecavelmente os seus três anéis. Edilza presenteara um anel de bronze e, em
troca, Miguel Rodrigo retribuíra com seu anel mais bonito, de brilhantes, que
trouxera de Sevilha e com umas castanholas que havia comprado para presentear a
uma sua amada espanhola, não acontecendo por causa da sua fuga à França e na
qual não tivera tempo para entregar-lhe. Ensinou Edilza a manuseá-las e a mesma
logo aprendeu a tocar e sapatearam como flamengo um bom tempo em cima de um
barco virado...
Miguel Rodrigo sentia-se contente
consigo mesmo. Já havia escolhido a sua futura esposa e confiava que ela
suportaria sofrer ao lado dele. Mas, havia um problema: estava desempregado e
não queria que Edilza de forma alguma, voltasse a sofrer novamente,
principalmente agora-prenhe. Acontece que Edilza havia combinado visitar Miguel
Rodrigo nos finais de semana, no Cais-do-Chupa. Miguel Rodrigo começa a
trabalhar na arte de transformar em anéis ruelas de bronze, etc. O tempo foi
passando e ele voltou a jogar as suas economias no jogo do bicho, quando vendia
alguns anéis, pregos, et cétera. Sabia que era contravenção, pela constituição
do país! Mas, o que poderia fazer se as autoridades constituídas eram conivente?
Um dia mesmo até dissera: “Deus me livre mais jogar...” mas existia, o que iria
fazer? Acontece que, desesperado com pouco dinheiro sabia que estava se
entregando ao relaxamento, despreocupando-se com o vestir quase entregando-se ao
alcoolismo. Edilza visitava-o praticamente uma vez por mês! Havia sonhado
afogado num mergulho, que dava no mar: “(...)” Teria sido o efeito do álcool
aquele horrível sonho? Miguel Rodrigo não conseguia dormir direito, sabia o
motivo da insônia e a pobreza o deprimia... Vinha-lhe uma saudade grande de
Sevilha. Abria a maleta e ficava admirando as castanholas que Edilza havia
devolvido, por não achar mais graça nas duas peças de marfim. Teria sido um
covarde? Chorava baixinho e sabia que era impossível rever a espanhola, mas
assim mesmo qual seria a sua idade? Estava velha, é claro... Estava para
abandonar tudo, tudo mesmo, o Recife, Edilza... pensava: “será que ela está
passando bem?” Tinha vergonha de ir saber notícias, sentia-se novamente como um
covarde, com necessidade de fazer sexo. No impulso do desejo resolveu
atravessar a Giratória (Ponte Giratória, inaugurada em 1923), indo ao Bairro do
Recife Antigo (Zona de baixo Meretrício), mal vestido e com roupas em
duplicata... Num momento de lucidez, achou que os andrajos estavam chocando a
sociedade. Resolve voltar ao Cais, fantasmagórico e pensava: “estou mais
parecido com Raskólhnikov ... –
personagem principal de Crime e Castigo –Dostoievski-
“Estou ridículo com estes trajes”. Retorna para o Chupa,
apressado. Quando chega no Areal retira a boina, as calças, a primeira
meia-coronha e a segunda de baixo. Retira da maleta uma roupa nova, fica nu e
segue para o mar dar uns mergulhos, banha bem o rosto e os cabelos. Dá uns
pulinhos, enxuga o corpo com as mãos e veste-se. Faz a barba com a sua navalha,
ajeita-se e, com ousadia, atravessa novamente a Ponte Giratória seguindo para o
Bairro do Recife.
Um mendigo com uma rede e um samburá vazio pede uma esmola a
Miguel Rodrigo e ele dá uma moeda, sobe as escadas de madeira e vê as mulheres
dançando semi-nuas, o desenho em néon de uma ponte simbolizando a cidade do
Recife, luzes de diversas cores no salão, piscando. As predominantes eram as
vermelhas e verdes. As lâmpadas das janelas não piscavam e havia muita zoada. A
morena que o chamou foi logo dizendo o seu preço! Miguel Rodrigo ficou logo
indiferente às carícias da meretriz:
- Vamos fazer menino? Amor, compra uma ficha pra mim, que eu
vou escolher a melhor música que tem na vitrola. – Notando Carrasqueiro ser estrangeiro,
falou ao mesmo tempo francês e inglês “à la beira de cais”: “Merci beaucoup...
I love you”...
-... (Ri sem som, baixinho, pensou: “Vá tomar no cu!”)
- Yes... Okay... Au revoir...
Com nojo da prostituta se aprontou, pagou e desceu as
escadas ouvindo gargalhadas das prostitutas... e o som das vitrolas dos bares retornou
a se misturar com o dos cabarés... Miguel Rodrigo vai a uma barraca da rua da
Guia e toma uma dose de cachaça, espreme um pouco de limão antes de beber e,
depois que engole a “lapada”, chupa o limão. Pede um cigarro, acende, paga a
pequena despesa e resolve não mais voltar pelo mesmo lugar. Sobe a Ponte
Maurício de Nassau, vê o pescador que antes havia pedido uma esmola, com cinco
siris no samburá. Melancólico, com aquela cena, fica de pé no meio da ponte –
no peitoril -, olhando os reflexos das luzes coloridas que, acendendo e
apagando, em sua maioria em gás-neon aformoseavam o Rio Capibaribe.
* Extraído do livro: O Pai do Chupa, pp.
21-42. Edição esgotada.
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