Ilha de Deus
Por José Calvino
"Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar
a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e
inexpugnavelmente nosso." Fernando Pessoa
“(...) Resolvera pescar na maré,
embaixo da ponte velha do Pina. Lá encontrava diversos colegas, filhos de
pescadores. Com uns arames na mão na maior agilidade pegando unha de véio,
mariscos, tiravam ostras, cortavam os pés na ribeira marinha, mas saravam de
imediato por causa da água salgada. Homens, mulheres, meninos e meninas pobres,
se encontravam embaixo da Ponte Velha do Pina, a pescarem nos cânticos de
alegria...”.
Saíram-se beijando. Alvo juntava
um pouco de areia no pé direito com ajuda do pé esquerdo e jogava-a no ar e
pegava-a com a mão direita. Cabocla o copiava, como duas crianças a brincarem
na praia. Os raios solares, na Ribeira Marinha dos Arrecifes, penetravam no
casal que se divertia esquecido da miséria do mundo, convivendo com a natureza.
Vez por outra desciam para tomar banho, e andavam sobre a areia, brincando do
“jogo da areia”; tudo respirava a poesia e a momentos de alegria e conforto à
matéria e ao espírito...
Branco, tio de Alvo, ofereceu
para que este fosse morar em Casa Forte com ele, e ter ‘aquela educação’ que
deu aos seus primos, todos bem formados, inclusive um deles era padre. Tinha
vocação e digno para a vida sacerdotal, bem como as qualidades morais e
intelectuais exigidas pela Igreja Católica. O seu tio Branco elogiava o seu
filho ad maiorem Dei gloriam:
- Não há na terra autoridade
maior, nem missão mais sublime do que a do padre...
Alvo agradeceu a oferta da Casa
Forte do tio e disse:
- Tio, irei morar na Ilha, até quando
Deus consentir, embora o apelido desta Ilha, sabe qual é?
- Não.
- Chamam-na, apropriadamente, de
Ilha sem Deus, neste aristocrático bairro da Zona Sul...
Enérgico, através de um bote,
chega à Ilha dos Pescadores, mais conhecida por “Ilha sem Deus”. Ao descerem,
do bote... ‘Chocolate’, preocupado porque quando estava na ressaca da bebedeira,
aquela Ilha era um céu para ele... ali era o seu esconderijo quando a polícia
estava em seu encalço, quando das suas aventuras no tráfico de maconha, na Zona
do Pina e do Recife.” ( O grande comandante, 1981, pp. 21-42).
A Ilha de Deus está situada no
Bairro da Imbiribeira, Recife-PE, não dispondo de infra estrutura urbana básica
de urbanização, o sustento era prioritariamente tirado da pesca. Atualmente, o
mais significativo exemplar deste ecossistema é o grande Manguezal do Pina,
área estuarina ilhada pela densa malha
urbana da cidade do Recife. A comunidade da Ilha de Deus localiza-se nesta
grande área verde. Morar na Ilha de Deus é, sobretudo morar no mangue.
Em 1981, lancei o meu segundo
livro “O grande comandante”, através do qual iniciei esta crônica com alguns
trechos salteados.
Falando com alguns moradores da
Ilha, ligados ao continente por uma ponte sobre o Rio Jordão, eles foram quase
unânimes em afirmar que os políticos só aparecem em época de eleição à caça de
votos. Em 1983, um deles chegou dizendo que até então não conhecia a ilha, e
pediu ao povo que não chamasse mais o lugar de Ilha sem Deus. Um secretário de
Estado preocupou-se apenas com ações assistencialistas como fez, por exemplo,
entregando R$ 10 a um ilhéu.
Em 1992 lancei a 2ª edição do
referido livro, a Ilha ainda era linda,
mas o ambiente continuava insalubre e malcheiroso. Gente e ratos
dividiam o mesmo espaço.
Este ano, tive o bel-prazer de rever
a Ilha com outro aspecto e conhecer Berenice Vitorino da Silva, 75 anos de
idade, popularmente conhecida como Dona Beró, que contou muita história da
comunidade. Uma delas relembramos do que sempre dizia o ex-governador Agamenon
Magalhães: “Pobre de Macacos prá lá”! “Quem não pode viver, morre”! Beró
continuou: “ No governo de Agamenon
Magalhães nós fomos expulsos daqui. Eu era muito pequena, mas lembro do
desespero da minha mãe que não sabia como iríamos sobreviver longe do mangue.
Daqui tirávamos todo o nosso sustento, como é até hoje. Nunca nos desligamos
daqui. Conseguimos voltar depois de 30 anos... E, vibrando, disse: “Só saio
daqui morta”. Observei o seu amor e o sentimento de felicidade por ver um sonho
quase realizado. Ela é autora da canção: “Quem te viu, quem te vê, quem te
verá...”:
“Hoje eu vejo a Ilha
prosperar... De barco, de remo e até ponte de pau, hoje eu vejo uma ponte
colossal//Quem te viu, quem te vê, quem te verá. Hoje eu vejo a ilha
prosperar.../ Palafita que um dia aqui reinou, hoje ta dando adeus ao seu
senhor//Quem te viu, quem te vê, quem te verá. Hoje eu vejo a ilha
prosperar.../Quem não acreditava e duvidou, hoje vê o lugar que Deus mudou”.
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