De professor a policial*
Por José Calvino
Povo educado, polícia
educada
Povo ignorante, polícia
ignorante
(Extraído do livro “O
ferroviário, p.76 – ed. 1980)
Baseado nos censos
penitenciários, que mostram serem os presos brasileiros, em sua maioria,
pobres, pretos e analfabetos lembro que perante a lei, ao menos, todos nós
somos iguais, mas será que é mesmo assim
na prática? Não acredito que no nosso Brasil se tenha uma educação básica que
nos prepare para vivermos felizes da vida. Observo sempre que a maioria dos que
nascem neste país não tem preparo para viver dignamente, e não tem sequer o nível
escolar primário! Eu continuo afirmando que a culpa é dos maus governantes por
que, do contrário, será então que os meninos e meninas é que teriam
culpa? Atualmente assistimos policiais militares praticarem arbitrariedades e truculências, até mesmo em festas
religiosas. Então, cadê o respeito à Declaração Universal de Direitos Humanos?
Sinceramente, eu sou a favor da desmilitarização da Polícia Militar,
evitando assim a perpetuação do sistema ditatorial no Brasil. Lembrei-me do
Curso Internacional de Policia (anos 70) quando então recebi aulas sobre o
artigo de George L. Kirkham, ilustre Professor da Escola de
Criminologia da Universidade da Flórida, Estados Unidos da América, intitulado"
De Professor a Policial". Creio que tomar conhecimento do seu conteúdo seja
muito importante para toda a sociedade que gosta de ler, sobretudo, para a
formação policial brasileiro. Aproveito
o ensejo e transcrevo o referido
artigo, com todo prazer, em resumo:
“Como professor de criminologia,
tive problemas durante algum tempo, devido ao fato de que, como a maioria
daqueles que escrevem livros sobre assuntos policiais, eu nunca fui policial.
Contudo, alguns elementos da comunidade acadêmica norte-americana, tal como eu,
foram muitas vezes demasiado precipitados ao apontar erros da nossa política.
Dos incidentes que lemos nos jornais, formamos imagens estereotipadas, como as
do policial violento, venal ou incorreto... Muitos dos meus alunos tinham sido
policiais, e eles várias vezes opunham às minhas críticas o argumento de que
uma pessoa só poderia compreender o que um agente da polícia tem de suportar
quando também experimentasse ser policial. Por fim, me decidi a aceitar o
repto. Entraria para a polícia e assim iria testar a exatidão daquilo que vinha
ensinando. Um dos meus alunos (um jovem agente de polícia de Jacksonville,
Flórida) me incitou a entrar em contato com os xerifes comandantes e vice-comandante e explicar-lhes minha
pretensão...
LUTANDO POR UM DISTINTIVO
Jacksonville me parecia ser o lugar ideal. Era um porto de mar e um
centro industrial em crescimento acelerado. Ali ocorriam também manifestações
dos maiores problemas sociais que afligem nossos tempos: crime, delinquência,
conflitos raciais, miséria e doenças mentais. Tinha igualmente a habitual
favela e o bairro reservado aos negros. Sua força policial era tida como uma
das mais evoluídas dos Estados Unidos... Pretendia um lugar não como
observador, mas como patrulheiro uniformizado, trabalhando em expediente
integral durante um período de quatro a seis meses. O comando concordou, mas
puseram também a condição de que eu deveria primeiro preencher os mesmos
requisitos exigidos a qualquer outro candidato a policial: uma investigação
completa ao caráter, exame físico, e os mesmos programas de treinamento. Havia
outra condição com a qual concordei prontamente: em nome da moral, todos os
outros agentes deviam saber quem eu era e o que estava fazendo ali. Fora disso,
em nada eu me distinguiria de qualquer agente, desde o meu revólver Smith
Wesson calibre 38 até o distintivo e uniforme...Concluído o curso, eu aprendia
como utilizar uma arma, como interrogar suspeitos, investigar acidentes de
trânsito, treinamento de luta de defesa pessoal, com os músculos cansados,
pensava que estava precisando era de um exame de sanidade mental por ter-me
metido naquilo...
PATRULHANDO A RUA
Ao escrever este artigo, já completei mais de 100 rondas como policial
iniciado, e tantas coisas aconteceram no espaço de seis meses jamais voltarei a
ser a mesma pessoa. Nunca mais esquecerei também o primeiro dia em que montei
guarda à porta da delegacia. Sentia-me no mesmo tempo estúpido e orgulhoso no
meu novo uniforme azul e com a cartucheira de couro. A primeira experiência
daquilo que eu chamo de minhas ‘lições de rua’ aconteceu logo de imediato. Com
meu colega de patrulha, fui destacado para um bar, onde havia distúrbios, no
centro da zona comercial da cidade. Lá chegando, encontramos um bêbado robusto
e turbulento que, aos gritos, se recusava a sair. Tendo adquirido certa
experiência em admoestação correcional, apresentei-me a tomar conta do caso. ‘Desculpe,
amigo’, disse eu sorridente, ‘não quer dar uma chegadinha aqui fora para bater
um papo comigo?’. O homem me encarou esgazeado e incrédulo, , com os olhos
raiados de sangue. Cambaleou para mim e me deu um empurrão no ombro. Antes que
eu tivesse tempo de me recuperar, chocou-se de novo comigo - e desta vez
fazendo saltar da dragona a corrente que prendia meu apito. Após breve
escaramuça, conseguimos levá-lo para a radiopatrulha. Como professor
universitário, eu estava habituado a ser tratado com respeito e deferência e,
de certo modo, presumia que iria continuar assim em minhas novas funções.
Agora, porém, estava aprendendo que meu distintivo e uniforme, longe de me
protegerem do desrespeito, muitas vezes atuavam como um ‘imã’ atraindo
indivíduos que odiavam o que eu representava. Confuso, olhei para meu colega,
que apenas sorriu.
TEORIA E PRÁTICA
Nos dias e semanas seguintes, eu iria aprender mais coisas. Como
professor, sempre procurara transmitir aos meus alunos a idéia de que era
errado exagerar o exercício da autoridade, tomar decisões por outras pessoas ou
nos basearmos em ordens e mandatos para executar qualquer tarefa. Como agente
de polícia, porém, fui muitas vezes forçado a fazer exatamente isso. Encontrei
indivíduos que confundiam gentileza com fraqueza – o que se tornava um convite
à violência. Também encontrei homens, mulheres e crianças que, com medo ou em
situação de desespero, procuravam auxílio e conselhos no homem uniformizado.
Cheguei à conclusão de que existe um abismo entre a forma como eu, sentado
calmamente no meu gabinete com ar condicionado, conversava com o ladrão ou o
assaltante a mão armada, e a maneira como os patrulheiros encontram homens –
quando eles estão violentos, histéricos ou desesperados. Esses agressores, que
anteriormente me pareciam tão inocentes, inofensivos e arrependidos depois do
crime cometido, agora, como agente da polícia, eu os encarava pela primeira vez
como uma ameaça à minha segurança pessoal e à da nossa própria sociedade.
APRENDENDO COM MEDO
Tal como o crime, o medo deixou de ser um conceito abstrato para mim, e
se tornou algo bem real, que por várias vezes senti: era a estranha impressão
em meu estômago, que experimentava ao me aproximar de uma loja onde o sinal de
alarme fora acionado; era uma sensação de boca seca quando, com as lâmpadas
azuis acesas e a sirene do carro ligada, corríamos para atender a uma perigosa
chamada onde poderia haver tiros. Recordo especialmente uma dramática lição no
capítulo do medo. Num sábado à noite, patrulhava com meu colega uma zona de
bares mal freqüentados e casas de bilhares, quando vimos um jovem estacionar o
carro em fila dupla. Dirigimo-nos pra o local, e eu lhe pedi que arrumasse
devidamente o automóvel, ou então que fosse embora – ao que ele respondeu
inopinadamente com insultos. Ao sairmos do carro de radiopatrulha e nos
aproximarmos do homem, a multidão exaltada começou a nos rodear. Ele continuava
a nos insultar e se recusando a retirar o carro. Então, tivemos que prendê-lo.
Quando o trouxemos para a viatura da polícia, a turma nos cercou completamente.
Na confusão que se seguiu, uma mulher histérica me abriu o coldre e tentou
sacar meu revólver. De súbito, eu estava lutando pra salvar minha vida. Recordo
a sensação de verdadeiro terror que senti ao premir o botão do armeiro onde se
encontravam nossas armas. Até então, eu sempre tinha defendido a opinião de que
não devia ser permitido aos policiais o uso de armas, pelo aspecto agressivo
que denotavam, mas as circunstâncias daquele momento fizeram mudar meu ponto de
vista, porque agora era minha vida que estava em perigo. Senti certo amargor
quando, logo na noite seguinte, voltei a ver já em liberdade o indivíduo que
tinha provocado aquele quase motim – e mais amargurado fiquei quando ele foi
julgado e, confessando-se culpado, condenaram-no a uma pena leve por ‘violação
da ordem’.
VÍTIMAS SILENCIOSAS
Dentre todas as trágicas vítimas do crime que vi durante seis meses, uma
se destaca. No centro da cidade, num edifício de apartamento, vivia um homem
idoso que tinha um cão. Era motorista de ônibus, aposentado. Encontrava-o quase
sempre na mesma esquina, quando me dirigia para o serviço, e por vezes me
acompanhava durante alguns quarteirões. Certa noite, fomos chamados por causa
de um tiroteio numa rua perto do edifício. Quando chegamos, o velho estava
estendido de costas no meio de uma grande poça de sangue. Fora atingido no
peito por uma bala e, em agonia, me sussurrou que três adolescentes o tinham interceptado e lhe
pediram dinheiro. Quando viram que tinha tão pouco, dispararam e o abandonaram
na rua. Em breve, comecei a sentir os efeitos daquela tensão diária a que
estava sujeito. Fiquei doente e cansado de ser ofendido e atacado por
criminosos que depois seriam quase sempre julgados por juízes benevolentes e
por jurados dispostos a concederem aos delinqüentes uma ‘nova oportunidade’.
Como professor de criminologia, eu disponha do tempo que queria para tomar
decisões difíceis. Como policial, no entanto, era forçado a fazer escolhas
críticas em questão de segundos (prender ou não prender, perseguir ou não
perseguir), sempre com a incômoda certeza de que outros,
aqueles que tinham tempo para analisar e pensar, estariam prontos para julgar e
condenar aquilo que eu fizera ou aquilo que não tinha feito.
Como policial, muitas vezes fui forçado a resolver problemas humanos
incomparavelmente mais difíceis do que aqueles que enfrentara para solucionar
assuntos correcionais ou de sanidade mental: rixas familiares, neuroses,
reações coletivas perigosas de grandes multidões, criminosos. Até então,
estivera afastado de toda espécie de miséria humana que faz parte do dia-a-dia
da vida de um policial.
BONDADE EM
UNIFORME
Freqüentemente,
fiquei espantado com os sentimentos de humanidade e compaixão que pareciam
caracterizar muitos dos meus colegas agentes da polícia. Conceitos que eu
considerava estereotipados eram, muitas vezes, desmantidos por atos de bondade:
um jovem policial fazendo respiração boca a boca num imundo mendigo, um veterano
grisalho levando sacos de doces para as crianças dos guetos, um agente oferecendo
à uma família abandonada dinheiro que provavelmente não voltaria a reaver.
Em consequencia de tudo isso, cheguei à humilhante conclusão de que tinha uma
capacidade bastante limitada para suportar toda a tensão a que estava sujeito.
Recordo em particular, certa noite em que o longo e difícil turno terminaria
com uma perseguição a um carro roubado. Quando largamos o serviço, eu me sentia
cansado e nervoso. Com meu colega, estava me dirigindo para um restaurante a
fim de comer qualquer coisa, quando ouvimos o som de vidros se quebrando,
proveniente de uma igreja próxima, vimos dois adolescentes cabeludos fugindo do
local. Conseguimos interceptá-los e pedi a um deles que se identificasse. Ele
me olhou com desprezo, xingou e me virou as costas com intenção de se afastar.
Não me lembro do que senti. Só sei que eu agarrei pela camisa, colei seu nariz
bem no meu e rosnei: ‘Estou falando com você, seu cretino!’
Então, meu colega me tocou no ombro, e ouvi sua reconfortante voz me chamando à
razão: ‘Calma, companheiro!’ larguei o adolescente e fiquei em silêncio durante
alguns segundos. Depois, me recordei de uma das minhas lições, na qual dissera
aos alunos: ‘O sujeito que não é capaz de manter completo domínio sobre suas
emoções em todas as circunstâncias não serve para policial’.
DESAFIO
COMPLICADO
Muitas vezes
perguntara a mim próprio: ‘Por que um homem quer ser policial?’ Ninguém está
interessado em dar conselhos a uma família com problemas às três da madrugada
de um domingo, ou entrar às escuras num edifício que foi assaltado, ou em
presenciar dia após dia a pobreza, os desequilíbrios mentais, as tragédias
humanas.
O que faz um policial suportar o desrespeito, as restrições legais, as longas
horas de serviço com baixo salário, o risco de ser assassinado ou ferido?
A única resposta que posso dar é baseada apenas na minha curta experiência como
policial. Todas as coisas eu voltava para casa com um sentimento de satisfação
e ter contribuído com algo para a sociedade - coisa que nenhuma outra tarefa me
tinha dado até então. Todo agente da polícia deve
compreender que sua aptidão para fazer cumprir a lei, com a autoridade que ele
representa, é a única ‘ponte’ entre a civilização e o submundo dos fora da lei.
De certo modo, essa convicção faz com que todo o resto (o desrespeito, o
perigo, os aborrecimentos) mereça que se façam quaisquer sacrifícios.”
* O artigo “De professor
a policial”, foi publicado na página 84 de seleções do Reader’s Digest do mês
de março de 1975. Tomo VIII, nº 46.
Foto
– Quartel da Polícia do Exército, Cabanga-Recife, 1960. Na foto, aparecem
soldados da PE e, ao centro em pé, com capacete (assinalado), o soldado
apelidado por “Barruada”, abatido pela Polícia do Exército, no golpe militar de
1964. Próximo, aparece o autor, o terceiro da direita para a esquerda, idem de
capacete. Os demais estão de gorros de pala.
Nota
do autor: No Recife, o regime fez as suas primeiras vítimas: os estudantes Ivan
Rocha Aguiar e Jonas José de Albuquerque Barros (mortos) e um ferido, não
identificado!